sábado, 15 de janeiro de 2011

Chuvas, enchentes, inundações - um VELHO problema.

Trecho da carta escrita pelo padre José de Anchieta a P. Diogo Laines, em Roma, na qual revela-se que as enchentes fazem parte do cotidiano dos moradores de São Paulo desde o início da fundação da cidade.







São Vicente, 31 de maio de 1560

A Paz de Cristo esteja conosco

Em primeiro lugar (o que em carta precedente toquei de passo) esta parte do Brasil, que se chama S. Vicente, dista a Equinocial para o Sul,vinte e três graus e meio, medidos de Nordeste a Sudoeste. Não me é fácil explicar nela a aproximação e afastamento do Sol, o curso dos astros, a diversa inclinação das sombras, as fases da lua, porque nunca estudei estas coisas; mas não vejo razão para que sejam diferentes do que se observa lá (na Europa).

A duração das partes do ano é que é muito diferente e tão confusas que não se podem distinguir com facilidade nem assinalar tempo determinado à primavera nem ao inverno. O sol nos seus giros produz uma certa temperatura constante, de maneira que nem o inverno regela com o frio, nem o verão é demasiadamente quente.

Em nenhum tempo do ano param as chuvas e, de quatro, de três em três ou até de dois em dois dias, se alterna a chuva com o sol. Contudo, há anos em que se fecha o céu e não chove, de forma que, não pela força do calor que nunca é excessivo, mas por falta d’água, secam os campos que não dão os costumados frutos; e algumas vezes chove demais e apodrecem as raízes de que nos alimentamos. Os trovões ribombam com tal estampido que causam muito medo mas raro caem raios, e é tanto o fulgor dos relâmpagos que deslumbram e obscurecem a vista e parecem disputar ao dia o esplendor de sua luz, e acompanham-se de violentas e furiosas ventanias, às vezes tão impetuosas, que altas horas da noite nos vemos forçados a recorrer à oração contra os perigos das tempestades e até a sair de casa para escapar à ameaça dela cair.

Com os trovões tremem as casas, caem as árvores e tudo se conturba. Não há muitos dias, estando em Piratininga, depois do pôr do sol, de repente começou a turvar-se o ar, a enevoar-se o céu, a amiudarem-se os trovões e os relâmpagos; o vento Sul envolveu a terra pouco a pouco até chegar ao Nordeste, donde quase sempre costuma vir tempestade, ganhou tal violência que parecia o Senhor ameaçar com a destruição. Abalou casas, arrebatou telhados, derrubou matos, arrancou pelas raízes grandíssimas árvores, partiu ao meio ou destroçou outras, de maneira que nos matos se taparam os caminhos sem ficar nenhum. Em meia hora (que não durou mais) é de espantar quanta devastação produziu em árvores e casas; e na verdade se Deus não abreviasse aquele tempo nada poderia resistir e tudo se arrasaria. E o mais admirável é que os índios, então entretidos em seus beberes e cantares (como costumam), sem nenhum temor a tamanha confusão das coisas, não deixaram de dançar nem de beber, como se estivesse tudo no maior sossego.

Mas vou dizer outra coisa,que V.P (Vª. Paternidae) julgará se é mais digna de lástima ou de riso, e talvez deplore a cegueira e zombe da loucura. Não eram passados muitos dias depois dessas coisas, vindo a uma aldeia de índios um padre e eu a trazer o remédio da alma e do corpo a um doente, achamos um feiticeiro de grande fama entre os índios.

Exortámo-lo a que deixasse as suas mentiras e reconhecesse a um só Deus, Criador e Senhor de todas as coisas; depois de longa(digamos assim) disputa, ele disse: “Também eu conheço a Deus e o Filho de Deus, e há pouco, mordendo-me o meu cão, mandei chamar o Filho de Deus que me trouxesse remédio e ele veio logo, e irado contra o cão, trouxe consigo aquela impetuosa ventania, que derrubou os matos, e me vingou do mal que o cão fizera”. Isto disse ele. E respondendo-lhe o padre “mentes”, as mulheres já cristãs, que aí estavam e a quem ensinamos, não puderam conter o riso, escarnecendo a loucura do feiticeiro. E não digo mais por não ser para este lugar, mas não virá fora de propósito advertir que não parece insolência a palavra “mentes”, porque os brasis não costumam usar de circunlóquios em explicar as coisas. De forma que a palavra “mentes” e outras dessa qualidade proferem sem ofensa; e até as que significam os membros secretos de ambos os sexos, a cópula e outras dessa natureza, as proferem cruamente sem vergonha nenhuma.

As estações do ano (olhando de perto) são inteiramente às avessas de lá;no tempo em que lá é primavera cá é inverno e vice-versa;mas não tão temperadas que não faltam no inverno os calores do sol para suavizar o rigor do frio, nem no verão as brandas brisas e as úmidas chuvas para regalo dos sentidos; ainda que (como já disse) esta terra de beira-mar, é quase todo ano regada pela água da chuva. Mas em Piratininga (que fica no interior a trinta milhas daqui, engalanada de campos espaçosos e abertos) e noutros lugares, que se lhe seguem para o ocidente, de tal modo se houve a natureza que quando o dia é mais abrasador com o calor do sol (cuja maior força é de novembro a março) vem a chuva trazer-lhe refrigério; o que também aqui acontece.

Para resumir em poucas palavras: no tempo da primavera e do verão é muito grande a abundância das chuvas, como a temperar os ardores do sol, de maneira que vêm de manhã antes da força do calor ou à tarde depois dele. Na primavera, que principia em setembro, caem abundantes e freqüentes chuvas com grandes tempestades de trovões e relâmpagos.

Há então as enchentes dos rios e as grandes inundações nos campos, tempo em que com pouco trabalho se toma entre as ervas grande quantidade de peixes que saem do leito dos rios para pôr os ovos, o que de algum modo compensa o prejuízo da fome que causam as inundações. Este tempo é esperado com grande avidez para alívio da fome e os índios chamam-lhe piracema, que quer dizer “saída do peixe”. Dá-se duas vezes por ano, por setembro e dezembro; é às vezes com mais freqüência. Deixam os rios e se metem nas ervas com pouca água para desovar; e no verão, quando é maior a inundação dos campos, saem mais abundantes cardumes que se apanham em pequenas redes e até á mão sem nenhum aparelho.

Assim, pois, todos os calores do verão se temperam com a abundância de chuvas; mas no inverno (passado o outono, que começa em março numa temperatura intermédia) acabam as chuvas e a força do frio torna-se mais aguda em junho, julho e agosto, tempo que vimos com freqüência as geadas espalhadas pelos campos crestarem quase toda árvore e erva, e a superfície da água coberta de gelo. E então os rios descem e baixam até o fundo, de maneira que com as mãos se costuma apanhar entre as ervas grande quantidade de peixe.




Diário do Comércio

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